
Por que somente a ciência importa em um laudo?
A respeito de práticas alternativas
Igor Cunha
11/17/20254 min read

No universo da Perícia Judicial, não existe espaço para achismo, intuição isolada, crença pessoal ou narrativas baseadas apenas na experiência subjetiva do paciente ou do profissional. Um laudo ou um parecer técnico só têm valor quando se fundamentam exclusivamente na ciência legítima: aquela construída pelo método científico, submetida a revisão entre pares, replicável e reconhecida pelos órgãos reguladores e conselhos profissionais.
Essa afirmação pode soar rígida, mas é fundamental. A justiça não trabalha com suposições: trabalha com evidências. E evidência, em Odontologia, é sinônimo de ciência.
O problema das “práticas sem evidência”
Nos últimos anos, surgiram — e continuam surgindo — diversas práticas apresentadas como “científicas”, mas que não resistem à mínima verificação de qualidade metodológica. São intervenções que:
não têm estudos sérios publicados em revistas indexadas;
não possuem replicabilidade;
não são reconhecidas pelos principais conselhos profissionais (CRO, CFO, CFM, etc.);
fazem afirmações amplas sem base fisiológica, anatômica ou clínica;
utilizam linguagem técnica de aparência científica, mas sem lastro real.
Essas práticas, apesar de populares em alguns nichos, não compõem o corpo da Odontologia baseada em evidências. E mais: elas não têm qualquer valor em ambiente pericial.
Isso porque um laudo não avalia crenças — avalia fatos.
Não considera "sensações" — considera mecanismos fisiopatológicos comprovados.
Não interpreta "possibilidades mágicas" — interpreta vínculos causais sustentados por literatura científica séria.
Qualquer alegação baseada em procedimentos sem evidência simplesmente não se sustenta quando submetida ao escrutínio judicial.
No laudo, não basta acreditar — é preciso provar
É comum que pacientes procurem perícias ou pareceres técnicos munidos de uma convicção interna de que “algo deu errado”. Às vezes, têm certeza absoluta de que determinado tratamento causou dor, dano, perda dentária, retração gengival, fratura, deslocamento articular ou qualquer outra consequência.
Mas aqui entra um ponto que diferencia a clínica da perícia:
a perícia não avalia a narrativa — avalia a evidência.
Para estabelecer se houve erro, dano ou nexo causal, é necessário que exista:
1. Evidência documental
Prontuários completos, fotografias clínicas, fichas de anamnese, plano de tratamento, prescrições, evoluções.
2. Exames complementares pertinentes
Radiografias, tomografias, fotografias, modelos, registros oclusais, avaliações de imagem.
3. Lógica científica do dano alegado
É possível, fisiologicamente, que aquele procedimento cause aquele dano?
Existe literatura que demonstre esse mecanismo?
O tempo de instalação do problema corresponde ao que a ciência descreve?
4. Coerência temporal e causal
Nem toda dor após tratamento é erro.
Nem toda complicação é negligência.
E — ponto crucial — nem toda crença é evidência.
Um laudo sério não busca “confirmar” a sensação do paciente nem o desejo de punição. Busca a verdade técnica, mesmo que essa verdade seja: não há erro.
O perigo da “ciência inventada” em laudos
Quando um parecer ou laudo se baseia em práticas sem respaldo científico, algumas consequências graves surgem:
1. O laudo pode ser impugnado
Juízes, advogados e peritos experientes rapidamente identificam conceitos sem validade acadêmica. Um laudo baseado em ideias não reconhecidas pode ser desconsiderado.
2. O profissional perde credibilidade
A reputação de um perito é seu maior patrimônio. Um único laudo inconsistente pode comprometer anos de carreira.
3. Risco legal
Emitir parecer baseado em práticas não reconhecidas pode configurar:
violação do Código de Ética Odontológica;
falsa perícia;
possível responsabilização civil e, em casos mais extremos, criminal.
4. Prejuízo ao paciente
Paradoxalmente, quando alguém tenta “ajudar” o paciente usando explicações fantasiosas, o resultado final é o oposto:
o caso perde força, a ação enfraquece e a busca por justiça é prejudicada.
Por isso, o compromisso ético exige clareza:
nem sempre haverá erro a ser constatado — e isso também é um resultado válido e honesto.
A responsabilidade de dizer “não”
Para muitos, pode parecer desconfortável entregar um parecer conclusivo afirmando que o tratamento não apresenta falhas técnicas.
Mas essa honestidade é a essência da Odontologia Legal.
É exatamente isso que diferencia um perito sério de um prestador de serviços que promete o impossível.
O papel do perito não é “provar” algo — é examinar a realidade com neutralidade e rigor.
Quando a ciência diz “não”, o perito deve ter maturidade profissional para repetir:
não há indícios de erro, não há nexo causal, não há fundamento.
Conclusão: só a ciência protege — o profissional, o paciente e a justiça
Em perícia, apenas a Odontologia baseada em evidências tem valor jurídico.
A ciência é a única linguagem que atravessa processos, audiências, contestações e pareceres sem ruir.
Quando um perito fundamenta seu laudo em fisiologia, em literatura séria, em exames, em lógica anatômica e em documentação, ele:
protege o paciente,
protege o colega envolvido,
protege a si mesmo,
e, acima de tudo, protege a verdade.
Um laudo é uma peça técnica, não um manifesto emocional.
Seu compromisso é com o fato, não com o desejo.
Com a realidade, não com a crença.
E é por isso que, em Perícia Judicial, somente a ciência importa.